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quarta-feira, 2 de março de 2022

  

ESCREVIVÊNCIAS 2.4

     Sol de pouca dura

Janeiro de 2002. Minha Mãe começa a dar mostras de decrepitude. São os noventa. Está surdíssima., perdi a oportunidade de manter com ela o riquíssimo diálogo sobre o passado, a sua infância sobretudo. Ouço-a apenas e confirmo-lhe, por gestos, a satisfação pela sua  parlenda. Agora fala-me das casas da Azinhaga da Besteira.

 “Olha. A primeira, quando se vinha de Vale de Lobos, logo a seguir ao Carreiro do Caracol, era a ilha… ainda me lembro de lá morar a Eugénia Joeira. Era a Lúcia do Mouco que lhe levava água. Que miséria ser velho…”

 Perguntem à nossa Maria Alzira quem era a Joeira, que ela recua à primeira metade de Oitocentos, para no-la situar. 

Minha mãe só me deixou duas notas sobre a solitária habitante: “Uma velha-muito-velha-e-feia-assim-como-eu…”

 Eugénia Joeira, matriz de quantos Bejas apareceram e desapareceram na Portela.

 Berro que me lembro das ruínas da casa da ilha, habitadas por silvas e medos. A poente da azinhaga. 

" Em frente da Quinta do Cervato, não era? Não era, mãe!?"

 “Qual Quinta do Cervato! Tratava-se só uma grande propriedade que o teu avô amanhava, de renda a um senhor Bragança do Gualdim.” 

Aí tinha eu razão, da Quinta do Gualdim.

 “Dantes não havia casas no Cervato, ouviste?” 

A surda era ela, não eu.

 Um emigrante sortudo, no retorno, instalara-se de tijolo e cimento, no sítio onde era a eira…

 E pela enésima vez: “Não há por lá palmo de chão onde eu não tenha moirejado!"

Com sacrifício da escolaridade.

 Em Dezembro de 1978, a Filomena, minha mulher, recolhe num dos seus trabalhos de investigação, Vamos falar de escolas*, os depoimentos dos sogros, sobre os seus tempos escolares.

 MariaEu só entrei na escola aos nove anos e foi preciso o pai da professora ir falar com o meu pai e convencê-lo […] foi “meter-lhe medo”. O pai da Sr.ª D. Angélica era fiscal de impostos e toda a gente, incluindo o meu pai, temia as suas multas, foi assim que cedeu a mandar-me aprender, visto que, na sua opinião, eu deveria fazer apenas aquilo que me mandassem e ignorar o resto. Um dia obrigou-me a responder à Guarda que não sabia o meu próprio nome porque nunca precisara de o assinar em parte nenhuma. Eu obedecia-lhe tão cegamente que uma vez, no caminho da escola, vi uma nota azul, [de]  tostão,  e deixei-a ficar no chão,  porque estava proibida de tocar em nada que não fosse meu. O meu pai podia ser considerado um proprietário rico, empregava muita gente e fazia-se temer, no entanto, fazia-me faltar à escola, muitas vezes para trabalhar no campo [ …] com os ranchos que assalariava. Gostei de andar na escola e acho que aproveitei bem o relativamente pouco tempo que fui à escola: aprendi, pelo menos, a ler correctamente, a escrever razoavelmente e, mais tarde, aprendi muita coisa à minha custa, lendo o que aparecia. Saí da escola a pretexto  de que a professora quase não ensinava costura; as raparigas não precisavam de instrução, precisavam era de “aprender a  remendar uma roupa e a governar uma casa”.

Ora assim se rompeu a relação aluna-professora, iniciada, por força de uma trovoada de Maio, nos Casais da Labaça. Foi sol de pouca dura! 

Minha Mãe voltou para as mestras

"...Três irmãs que nem a 4ª classe tinham e que nos ensinavam uns pontos, alguma leitura e contas num quarto lá da casa delas leitura e contas. Cada uma levava […] um banquinho para nos sentarmos, o açafate da costura e a merenda. Acho que aprendi muito pouco no tempo em que lá andei.

A professora oficial “ ficou muito mal parecida”

 Portanto, meus queridos leitores, temos de concluir que as celebrações republicanas, no pátio da escola, em torno da árvore cívica não eram totalmente convincentes. Por mais que a sociedade civil acarinhasse a escola pública. Que importava o apoio dos senhores das quintas, dos comerciantes, dos agentes pedagógicos, das autoridades? Aquele recente estabelecimento de ensino, ainda que leccionando, em 1915, um curso nocturno, não deixava se ser visto como um empecilho ao desenvolvimento local. Arrisco eu.

Contudo, perdoem lá ao meu avó Marona. Já viram nos recortes da Maria Alzira, e mais  adiante explicarei, também ele  irá corrigir a mão.

  E vocês corrijam-me, se estou a maçar. Abraços.

(Continua)

Beja, FilomenaVamos falar de escolas, Lisboa, DGCE,MOP, 1979.  

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