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domingo, 13 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2 6 As leituras da avó Otília

 6 As leituras da avó Otília

 

Livros da Portela antiga. De um sítio onde, além dos poucos manuais escolares… só haveria mais o “livro da mercearia”, escriturado a rogo das mulheres. «Se fizer favor, escreva lá esta quartinha de açúcar…». Mais o  “da taberna”, onde os homens mandavam. «Assente, que depois se paga!» Quando?

Acabámos aqui? Deixem-me indagar.

 Na minha família, a primeira geração com aprendizagem metódica das letras, capaz de enfrentar de pontas um livro, foi a de meus pais e tios… Assim pensava, até que tive de mudar de opinião.

 Abria-se uma excepção para o meu bisavô Hipólito, que frequentara o seminário. Ressalve-se a confusão seminário/liceu, numa cidade em que os estabelecimentos religiosos e laicos eram contíguos. Coisa a ser retomada, por nunca esclarecida.

 Os meus avôs António Beja e Joaquim Marona tinham uma literacia muito parcial: o primeiro, entendia-se com as gordas d’O Século; já o segundo só conseguia fazer anotações mais ou menos alfanuméricas, suficientes para assegurar a contabilidade agrícola. Testemunho da minha mãe que dele aprendeu a fazer as folhas semanais de ponto do pessoal trabalhador. Pelo menos, recolheu esta vantagem pela breve escolarização que permitiu à filha… Porém, que mais se podia pedir a um homem educado apenas pela labuta da Quinta da Mafarra, continuada na vizinha Quinta dos Anjos?

Sobre quantos antepassados analfabetos assenta este nosso privilégio? Perguntava por aí o nosso quase vizinho poeta Ruy Belo.

 Das avós, irmãs, ambas filhas do bisavô Hipólito […] Guardo o sorriso da materna, Gertrudes, numa cara de lua-cheia. Quando me ouvia ler textos das primeiras classes. Pedia-me que repetisse: «A raposa ladina? Ladina? Diz aí no teu livro? Ai se é… a marota! Lê mais, filho.» Deliciada com as minhas competências.

 E Otília, a avó paterna. “Mulher-e-homem da casa”, como a definirá a filha Piedade. Azougada. Sempre a esbracejar contra a adversidade. Criou quatro filhos, costurou, cultivou a horta, colheu e vendeu os seus primores. […] Setentona, quando merecia o descanso, as coisas pioraram. O meu avô ficou imobilizado por uma congestão cerebral e ela teve de reencontrar escondidas energias.

 Agora a minha surpresa, razão para antecipar esta “escrevivência”, ou sejam: As leituras da avó Otília.

 Numa das minhas visitas, pelos meus vinte anos, esta avó pediu-me livros emprestados. Livros?! Sabia ler?! Caí da tripeça! Sim, livros, para se distrair. Enganar o tempo, à cabeceira do doente.

Julgava-a tão incapaz de ler como a avó Gertrudes. Mesmo assim, trouxe-lhe livros, que apreciou por falarem do nosso mundo rural. Redol. Pedia mais.

Só agora sei que a nossa Maria Alzira era outra fornecedora.

 Explicou-me que, durante anos, se desinteressara de tal maneira pela leitura a ponto de se convencer de que perdera essa habilidade. Um dia, vencera tal derrota, retomando da poeira dois ou três trastes encoirados. Edições dos finais do século XVIII. Provavelmente provenientes do saque de ignaros à livraria de algum convento, quando da extinção das ordens religiosas. Tinham chegado à família pela mão do meu bisavô Hipólito. Um deles era uma Virtuosa Vida de São… São Não Sei Quem, tomo que nunca mais compulsei.

O outro, um romance de cavalaria. Com personagens e enredos que ainda hoje alimentam o teatro popular transmontano e santomense.

Passados mais trinta anos, perguntei à minha tia Piedade pelo paradeiro dessa livralhada. Estou neste momento a ouvir-lhe a voz musical, tranquila. «Ò Quim, onde pára tal coisa?...» Que, sem dúvida, se lembrava…capa de pele, avô Hipólito, arrumados entre peças de louça de Sacavém.

 Dias mais tarde, remeteu-me de Almeirim a História de Carlos Magno e dos doze pares de França. Na lombada, num resto dourado, apenas Carlos Magno. Sem portadas, nem guardas. Cap.1 do Livro Primeiro: Como el-rei Clóvis sendo pagão e infiel, teve por mulher Clotildes, cristâ, neta d’el-rei Guido e sobrinha d’el-rei Agabundo da Borgonha…

Mais do que a matéria carolíngia, fascinou-me naquela peça bibliográfica a nota lançada a tinta pelo meu bisavô: “Meu filho José Hypolito / Nasceu a 20 de Dezembro de 1887. Francisco Hypólito da Sª”. Seu único varão.

Anos mais tarde, quantos? Uma rapariga inscreveu na mesma página: “Maria José/ filha do Sr. J.H”. Filha de meu tio-avô José Hipólito que, em 1925, foi o encarregado da obra de restauro da nossa Escola.

Houve ainda quem lavrasse, a lápis, nessa página e na seguinte, operações de aritmética. Cálculo de custos? À falta de papel, fazia-se uma conta numa parede, na poeira do caminho, quanto mais nas páginas de um romance de cavalaria!

Devolvi o livro à tia Piedade. Contudo, deste fundo do letrado bisavô Francisco Hipólito da Silva, chegou ainda à minha posse um outro exemplar. Oferecido em 1961 pelo seu neto, Júlio, o então único sobrevivo dos filhos de José Hipólito e de Maria José da Quintinha. Tratava-se de um pitoresco “dicionário de sinónimos e poético”, da primeira metade do século XIX, alavanca facilitadora de rimas a poetastros encalhados. Trazia entre duas páginas uma argolinha de flor de glicínia. Deixada quando a nau desencalhou?

 Poeiras dos livros…

 

Como o palavrório já vai longo, por aqui me fico. A Florinda entrará apenas quando esta poeira assentar.


4 comentários:

  1. Que leveza empolgante a sua escrita, querido Professor! Beijinho!

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  2. Encantada com o 'palavrório'!
    É um mundo que se revela, cheio de memórias, e gostosas.
    Obrigada, amigo Beja.

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