Parado no cabeço da Torre, nas imediações da casa de meus avós Maronas.
É um
retorno recorrente pela memória, pelo sonho. Também me sirvo do Google
Maps, para confirmar a irreversível desintegração da paisagem
infantil. Ou a sua dolorosa posfiguração.
Cada sol nascente, o meu avô Joaquim, debruçado no muro do casal, mesmo
antes de orientar a jeira, enfurecia-se contra o Cabeço do
Zeimoto. Do Zé Morto, que já é mais nome de cristão. Tolhia-lhe, aquele morro,
a visão das águas do Tejo. Sobretudo, das vinhas no campo do Rossio. Tal contenda
de gigantes era motivo de calada chacota da família.
De igual modo me confronto com as imagens do Google, sem o desvario de as
pretender arrasar, devolvendo-as ao uso agrícola do passado. Vejo na mancha
verde da Quinta dos Anjos um velho urso, sonolento, solitário como todos os
velhos, caminhando. Vou-lhe na peugada com o devido atraso de quem se desloca,
ao longo da Azinhaga da Besteira.
Voltando ao olhar matinal do meu avô…Teria a força de quem se julgava capaz
de emprenhar a terra!
Caminho fora!
Santarém avista-se a uma légua, mediam os antigos. Impondo a
torre do Convento da Trindade e o zimbório do Presídio Militar, por sobre
oliveiras e pinheiros das minhas cercanias. Sinto-me, ainda, ali prisioneiro,
entre valados cobertos pelas balças...
Assim se teria sentido a minha mãe, quando
deixou o Casal das Labaças para fixar residência mais perto da Portela, no
local que na sua infância se chamaria Vinha Velha. Ou Venda Velha. Que
importância isso tem agora?
Por ali se demorou quase setenta anos. Até que um dia…
Abriu os olhos,
compreendeu que já não era a sua casa, a nossa casa. Sorriu-me e começou a
cantarolar, na cama do Hospital:
“Já não tenho pai nem mãe
Nem nesta terra parentes
Sou filha das tristes ervas
Neta das águas correntes
As flores do meu jardim
Fizeram uma sociedade
Malmequer e amor-perfeito
Açucena e mais saudade”
Só à beira-fim lhe ouvi tão conformada elegia. Rendia-se à Natureza,
dando-nos mais uma lição. De vida não, de morte!
Eu e os meus, deixámos para trás as encostas de suave-verde deslize para a
Vala, ou seja, para a ribeira de Cabanos e os seus pauis.
As quintas. Terra do Cervato, Quinta das Trigosas. Ambas associadas à
luta agrícola do avô Marona. Não lhe pertenciam, mas tomou de renda aquelas
chapadas, para arrotear, surribar, plantar oliveiras, semear… Pão e, pelo
menos, dois filhos, carinhas chapadas, nunca assumidos. Dizia-se.
Quinta da Comenda. Irrompe, numa mancha malva, do arvoredo, antes do casario
branco de Alcanhões. Dali saíam as “tralhoadas”, de gado bravio, já humilhado
por corridas, castrações e, finalmente, pelas cangas. Para as lavouras no
património do Comendador, íntimo de Alexandre Herculano, em Vale de Lobos.
Adversário figadal do meu avô Joaquim que, de sangue mais fresco, lhe levou a
palma nos favores de uma mulher. Pagou cara a aventura o pequeno agricultor.
Ameaças, tiroteios, incêndios de casas e searas. Para ordenar vingança, não
estava o Comendador impotente. Da Comenda saíam, a seu tempo, as senhoras
acólitas do reverendo Formigão, a fim de que o milagre dos mil sóis
sobrevivesse à lógica dos positivistas. Proselitismo cronicado por um
empedernido ateu. Tomás da Fonseca.
Da Comenda todos tinham saído. Deixando para trás portões, portas e
janelas, tudo escancarado, na residência dos senhores, nos quartéis dos
trabalhadores, nos palheiros e estábulos. Apenas duas rabilongas viuvinhas,
riscaram o ar, quando um homem e uma mulher entraram a furto no pátio, ao cair
do século XX. Ninguém que lhes vedasse o engodo das sombras, pelas escadas,
corredores, salões, quartos… Nada que não fosse silêncio e calor estival. A que
se sobrepôs um estranho, súbito, desejo. Porquê?
Quinta da Besteira. Primeiro, a família Constâncio, falhada na gestão dos
bens. Quer directa quer por arrendamento ao lavrador José Tropa, da Granja. Num
tempo de produzir trigo para povos em guerra na Europa.
Meu pai foi lá motorista. Chofer, à disposição da senhora,
nem sempre com salário completo e pontual. Em contraste com a ostentação dos
patrões por Lisboa, Sintra, Cascais. Despediram-no, por não poderem suportar os
custos do seu trabalho, embora o chamassem para ocasional serviço de táxi,
enquanto se mantiveram na Quinta. Lembro-me de, muito criança, ter estado na
cozinha dos senhores Constâncios. Ao meu pai, ofereceram café. A mim, uma maçã.
Já não sei contar o episódio de um Constâncio infeliz. Enleou o
atacador do sapato no gatilho e esticou a perna. O tecto aparou-lhe o cérebro.
Por dívidas de jogo, explicavam os criados. Para não ter de executar um amigo,
conforme lhe caíra em sorte num julgamento do clube maçónico. Na versão
dilatada pelo sogro, o comendador Paulino. Que lhe teria deixado a espingarda
em cima da cama, com a recomendação de já estar carregada, acrescentava a
criadagem. Honra.
Pelos meus cinco anos a quinta foi adquirida pelo Dr. Artur Duarte.
Advogado e deputado da Nação.
No final dos anos cinquenta, Domingos Constâncio, desviou o carro, numa
viagem de regresso a Lisboa, atraído pelo antigo domínio familiar. Emoções. No
entanto, acabou por não ir além da adega dos meus pais, onde, bebericando, se
refez das saudades. Insistindo para que o meu pai não continuasse a tratá-lo
por menino Domingos. Catarse pelo álcool.
Voltemos, num rápido, à confinante Quinta das Trigosas. As duas maiores
parcelas desta unidade agrícola foram trucidadas. Pela auto-estrada, que levou
também parte da Quinta dos Anjos e da Mafarra, aproximando da loucura alguns
dos moradores da vizinhança. E por dúbios projectos industriais e imobiliários.
Daqueles que, não resolvendo o desabrigo, nem reduzindo o desemprego, exaltam a
ganância. Por cima e por baixo da mesa.
Alto! O Google já me trouxe para o entroncamento da
Rua 19 de Março com a Nacional 3. Sem me assinalar o começo da Azinhaga da
Besteira…
Olhem que nem parei, para uma cambalhota, ao Rebola Cabacinha, em frente do
portão da Quinta do Casalinho. Agora também não paro à porta do Gil. Fica para
outro dia, quando for para a Escola.
Preparem-se, pois dessa vez venho a pé,
como sempre.