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sexta-feira, 29 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.12 Arranjei um amigo

 Saltei o valado!

Casal dos Labaças. Ou das labaças?  Já não importa ir procurar. Sítios que se deliram no meu imaginário. Sítios do nunca mais. Que alívio!

Era por ali a propriedade dos meus  avós Maronas, como já disse. 

Foi por ali e por lá comecei eu a ser criança. A sentir os limites do espaço e o apelo da debandada....À menor oportunidade.


Uma tarde, antes do casamento, da Ilda Direitinho com o  Joaquim Caetano.

O que era aquilo?

Saltei o valado da Texugueira, intrigado pelo ruído do tractor. Caminhei ao longo do rego da charrua, até que o Joaquim Caetano me descobriu, parou e convidou a trepar para a máquina. Dei uma volta, encantadora. Guardo dessa viagem um odor estranho de  leiva e combustível . Irrepetível!

 De repente, vejo a minha avó Gertrudes, a gesticular, no sítio da Oliveira Santíssima. Do palheiro dos bois, no casal dos meus avós, alguém me vira fazer aquela incursão na Texugueira. 

Rapazinho em fuga? Era só o que faltava!

Fui reencaminhado para os limites do terraço. Entre a casa-de-fora e a casa do forno. Que me contentasse com os relinchos, os mugidos, os cheiros dos animais.

Deixá-lo!

 Tinha acabado de confirmar um amigo. 

O Joaquim Caetano!

***

..

 


terça-feira, 26 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.11 Os Direitinhos

A SEMENTEIRA

Na Quinta dos Anjos. Manhã de Inverno, talvez 1948-49. Frio e nevoeiro. 

A Ilda Direitinho, ainda solteira, era , por morte da mãe, Justina, a governanta da casa.  Mandou o irmão Fernando levar o almoço ao outro irmão, mais velho, o Mário Olho-de-Vidro, que andava na sementeira do trigo. 

Os Direitinhos viviam num quintal colado ao nosso. De muito pequeno, perdido-e-achado, era com eles que me distraía. E se surgia a oportunidade, logo me punha a caminho com aquela boa gente.

 Com o Fernando, entrámos  na Quinta, para o lado da eira, na folha  da Mafarra. 

De onde guardei, até hoje, imagens  da grande lavoura do  Caldas. Aliás do senhor Caldas! Respeitinho  era bonito!

 O trator, sempre conduzido pelo Joaquim Caetano, várias juntas de bois que gradavam, dois semeadores…

Parecia que a névoa apagava os semeadores,  sempre que se afastavam ; para os devolver,  nítidos, tempo depois. Quando retomavam a nossa direção e vinham reabastecer o saco sementeiro.

Enquanto eu os não avistava, disse-me o Fernando....

- Chamavam-lhe o Palã. Por ser claro  e diverso na conversa.  Paleio! -

... que aqueles homens andavam a semear trigo, nas nuvens!

Não me convenceu! Então, chamou-me perto  dos  bois e mostrou-me o vapor saindo-lhes das narinas. Aquele “fumo”, o nevoeiro e as nuvens eram tudo a mesma coisa, explicou. Bolinhas de água! 

Encolhi os ombros, indiferente a tanta sabedoria .

Empurrado pela friagem da manhã aproximei-me de uma fogueira. Alguém pusera pinhas ao calor, para soltar os pinhões. Atraído pelo aroma, tentei forçar a abertura das escamas de uma infrutescência.

 Ai! Queimei-me. Pior, fiquei com as mãos manchadas de resina, enegrecida pela poinha negra das sementes. E agora? 

Obrigaram-me a retomar o caminho de casa, de braços abertos, para não sujar a roupa. 

Foi a Ilda que, com um trapo embebido em petróleo, escorrido da torcida do candeeiro, me fez a primeira limpeza. Incompleta, para poupar.

O petróleo continuava caro e escasso.  O candeeiro era um luxo. Acendia-se excecionalmente, naquela casa. Bastava a candeia, aproveitando o  azeite  das frituras.

 De mãos limpas, já podia seguir para casa. Para ouvir ralhete por ter mexido onde não devia. 

Como se as crianças fossem estátuas!



O Casamento

A Ilda e o Joaquim Caetano casaram na capela dos Anjos. Fui assistir, a convite da noiva.  A minha mãe , fazendo das tripas coração,  confiou-me ao Coquelim.

 Com o encargo de me trazer de volta logo que a cerimónia acabasse. Que tivéssemos  juizinho, sobretudo ao atravessar a estrada, no Alto da Portela. Não era a primeira vez que me chamavam a atenção para o perigo de atropelamento naquela passagem. 

Eu andaria pelos cinco anos, o Coquelim teria aí uns dez. 

Após a cerimónia, o meu acompanhante esqueceu-se do compromisso. Virou costas e partiu, rumo à Besteira, com um bando de catraios mirones: um Toino Rocha, o Pampo e o Luís Pedro do Pagante , o Toino Bacalhau, o Nicolau da Sapata… Ah! E o Rebelana

Chegam, por hoje... Malta brava. Sombras, não mais.

 No alvoroço de calaceirar, sem convite, o copo-de-água. Sempre haviam de lhes atirar algumas sobras. Uns nacos de pão com carne. umas aparas dos bolos-ferradura, confeitos...

Corriam pela ladeira do Cabeço abaixo. Eu protestava: que não me deixassem para trás! Em vão. Sabiam que não me ia perder Por assim dizer, já estava em terreno da minha família.

 Quando a minha mãe me perguntou, se tinha ido dar o beijinho aos noivos, se gostara do que vira, respondi pela positiva. E avancei um pedido de esclarecimento:

 «Ó mãe, o que é que o Coquelim disse que os noivos vão fazer esta noite?» 

Não fui respondido!! 

E ainda ouvi ralhar.

sábado, 23 de abril de 2022

BASILISCO!...

Não seria correto continuar na companhia do tal Badalisco da Quinta dos Anjos, sem um breve e já tardio esclarecimento.

O termo certo é basilisco!  Por corruptela se chegou a badalisco. Ou se preferiu usar basalisco

Esta alteração fonética vai de paralelo com a mudança operada na onomástica, em que o nome de Basilisa passaria a soar popularmente como Badalisa . Ocorrência  registada na  região saloia. A propósito, podem ser referidos a capela  e o culto a Santa Basilisa e São  Julião, na Ericeira.

As notas abaixo completam esta clarificação. Não sendo portanto necessário perder mais tempo.

Só falta acrescentar que a reprodução da peça,  que foi pertença da Capela da Senhora dos Anjos,  aproximar-se-ia da imagem de Melchior Lorck. Se a memória não me falha.

Reconhecido pela vossa atenção.

1. « basilisco simbolizava a figura alegórica da morte, do medo, do diabo, do pecado ou do Anticristo. Entre os pecados mortais, em que o basilisco é muitas vezes comparado estão a cobiça, mas também a inveja e a arrogância. Jesus Cristo é representado muitas vezes esmagando o basilisco.»  in Google

2.


Melchior Lorck: Basilischus (basilisco), Radierung, 1548

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.



terça-feira, 5 de abril de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.10 A bisa Perpétua

 A bisa Perpétua

Deixem acrescentar que o Badalisco dos Anjos era tão antigo na sabedoria da minha mãe como tudo o que, na infância, ela aprendeu com a sua avó paterna, Perpétua.

Perpétua Azevedo não viera de Alcanhões, para a Quinta, de mãos a abanar. Trazia-as ocupadas com uma filha de poucas semanas, enquanto na mente lhe laborava uma esperança: ficar ama de leite dos Sampaios, os proprietários antecessores dos Caldas. Perpétua esquivava-se à humilhação da família, por uma gravidez de macho desertor.

 Se Marta subira ao altar de Alcanhões com o seu ventre fecundado, Perpétua virou-lhe as costas na procura de um lugar onde a filha não ouvisse a vergonha de um tal ingresso neste mundo.

A figura desta mulher tinha, para a minha mãe, uma dimensão mítica. Fêmea capaz de construir o seu próprio destino, a avó Perpétua

Na Quinta dos Anjos, veio a jovem Perpétua encontrar dois desempenados moços de lavoura, Jacinto e José Marona. Rapazes de um Manuel da Romeira, Manuel António, já passados pela Quinta da Mafarra, ao que dizem os papéis da Maria Alzira. Com qual dos dois havia Perpétua de ficar, já que ambos não escondiam o desejo de casar com ela, sem se preocuparem com o facto de ter sido usada e pejada.

Perpétua também caíra no agrado dos patrões, que a mantiveram no serviço da casa, quando deixou de amamentar. Não tinha pressa em escolher um dos dois Maronas.

O José era o mais atiradiço. Atribuíam-lhe a fama de sementão de algumas barrigas da Gaia, que lhe ia pela calada da noite aquecer as mantas. Guio-me pelo repertório da minha mãe, muito embora me pareça mais plausível o relato da Maria Alzira, sobre Maronas e Gaios. 

“Filhos do cunhado” e “Filhos do palheiro!”, distinguia a minha bisavó, condoída com a sorte das crianças. Ela lá sabia.

Perpétua Azevedo acabou por casar com o Jacinto Marona.

Uns casando no altar da capela, outros, não muito longe dali, na tarimba do estábulo. Era um "vê se te avias! A maneira mais prática de pôr um fim a estas coisas que, de outro modo, se desejariam para sempre. Enquanto durassem!...

 Destes dois irmãos vêm os Maronas da Portela. Alguns dos Gaios também tomaram o nome de Marona. A mãe Gaia saberia melhor do que ninguém. Ponto final.

Isto há cada uma! Entrei na Quinta dos Anjos para fazer um pedido ao atual proprietário, sobre a conservação da sua propriedade e, agora, não sou capaz de virar costas. 

Como ele ainda não me convidou a sair, volto à minha festa.

Naquela festa dos Anjos, minha mãe limitou-se a ir à missa. À saída da capela, mão habilidosa roubou-lhe um broche de ouro e brilhantes. Ficou inconformada, toda a vida. Embora o meu pai lhe tenha oferecido, assim que as economias o permitiram, uma peça muito semelhante, nunca mais deixou de sentir a afronta. Sempre que a segunda jóia cativava o apreço de alguém, lá vinha a minha mãe lembrar-se do furto. Perdas insubstituíveis!

 E o que  a perda dos objetos comparada com a das pessoas? Badaliscos, joias, alfaias litúrgicas e agrícolas de antanho… Incluo no rol, a propósito, o bico de escamisar da avó Perpétua. Onde é que raios eu o guardei, que lhe perdi o tino? 

Fossem-se os anéis mas ficassem as pessoas! Com a sua memória fresca, o tal  brilhozinho nos olhos e o coração tolerante. Cuidado, viver sempre também cansa, amigo!

E já que isto tem parte de crónica familiar, possa a minha prima Bia, afilhada da minha mãe, gozar-se por muitos anos daquela joia, que a madrinha fez questão em lhe destinar, no momento de partilha dos seus pertences pessoais.

            Não foi a minha mãe a única vítima da festa. Durante a noite, os amigos do alheio tinham levado a caixa registadora do João Melro, merceeiro da Portela, que instalara barraca de comes-e-bebes, no arraial. Tratava-se de uma pequena caixa vermelha de manivela, depressa localizada no meio das tojeiras do pinhal. Vazia!

Acabaram-se os fundos. E por hoje o narrador despede-se, sem cheta.

 Já está habituado, não faz mal.

(C

segunda-feira, 28 de março de 2022

ESCREVIVÊNCIAS 2.9 O badalisco

  

 

Badalisco?


A festa já não era pertença do povo, afinal. Contava a minha mãe que a população perdera no tempo da Primeira Republica o consuetudinário livre acesso à capela. A Quinta cedera terreno para a construção da escola primária mas assumiu a salvaguarda do  culto. Isto já foi redito.

Não é missão menor, essa de conservar o património cultural e afetivo de uma comunidade. Obriga a critérios, investimentos, planos de ação, que não dependem apenas do Estado. Para já não falar de outro encargo remetido para as explorações agrícolas: a defesa da paisagem, dos ecossistemas... do verde. Daqui lavemos as mãos.

 A República laica, em muitos aspetos anticlerical e alvo do obscurantismo religioso, na sua fase inicial e durante o Estado Novo, mais do que construtora de escolas, foi também, sempre que a liberdade o permitiu, promotora da alteridade democrática. Ao celebrarmos o centenário do regime, é imperioso sublinhar o facto. Ainda que durante duas gerações se tenha permitido tamanha promiscuidade entre poder político, económico, religioso e social.

Com a integração da capela, pertença afetiva e cultural da comunidade, no património da Quinta, houve algum ressentimento popular. Já sem grande repercussão, ao tempo da minha infância. A não ser quanto à tutela do Badalisco. Não estou a referir-me a um santo, muito pelo contrário.

            Lá se ficou na mão de privados, o Badalisco. Se assim não fosse, ter-se-lhe-ia perdido o rasto, estou certo. Disseram-me há alguns meses que, entretanto, só se perdeu uma pata! Pergunto: quem se pôs a medir forças com o bicho? Onde param as criaturas capazes de desfear ainda mais um, já duplamente punido, anjo perverso? Perverso, mas filho do mesmo criador. Que pressa em extinguir toda a diversidade. Na Terra e no Além. Não há direito!

            Badalisco. Fera medonha. Saiu um dia ao caminho de um caçador, no bosque das imediações da Capela. E não seria a lenda apenas um terror para afastar caçadores furtivos de tais coitos? Desvairado, o pobre monteiro, mal teve fôlego para implorar a ajuda de Nossa Senhora dos Anjos. Naquela mesma toada do D. Fuas, no Sítio da Nazaré. Com a diferença: não houve tabelião que anotasse o nome do nosso monteiro. 

Nem admito que a Maria Alzira retire de algum cartório prova contrária à minha afirmação. 

Valha-me Nossa Senhora dos Anjos!

 Aí vem a santinha, por cima dos pinheiros, (regressará séculos volvidos, a umas boas léguas dali, empalancada numa azinheira) para comandar os trabalhos de uma outra fera, a Serpente.

 Obedecendo à Mulher, escrito está, enrola-se a bicha no disforme Badalisco e lhe tolhe as garras. Como, entre Serpente assanhada e a tal outra feia criatura, tivesse de vir o Diabo escolher – o que redobraria as complicações em tais brenhas! – decide-se a Senhora dos Anjos pela conversão em ferro das duas alimárias contendoras. Até à ruína dos tempos!

Guardou-se na sacristia da capela a comprovativa estatuária. Ainda estava por nascer, ouvi em menino, o valentaço capaz de levantar do chão tal ferro, fundido pelo fogo dos céus.

Que eu saiba, não houve mais aparições pelas quintas e quintais das cercanias. 

Embora línguas peçonhentas garantissem que D. Maria Alva implorava ao Carlinhos da Asseiceira…. A ele que já apalavrara com a Senhora, lá para os lados de Rio Maior, a repetição de um milagre nas terras dos Alvas. Honras seriam tributadas com santuário e hossanas. Seguramente que Zé Alva deixaria de beber. Isso sim, não seria milagre de somenos. Todavia os céus não estavam de feição.

Na quinta dos Anjos. «E o caçador, mãe?», indagava eu, na mira de prolongar a história. Mijara-se todo com a aparição do Badalisco! Já não me lembro se o milagre incluía roupa lavada.

 Com a estátua do monstro nunca fui medir forças, nem me lembro de lhe ter posto os olhos em cima. Isto é, a não ser pela Internet, em data bem recente.

 Os meninos da escola da Portela globalizaram o Badalisco. Esse meu encontro virtual, a meio da noite, com o monstro, agora inofensivo, saldou-se por um inexprimível conforto. Que alívio! Depois, caí na cama e dormi como um justo. O Badalisco estava virtualmente eternizado.

Ai, se a surdez da minha mãe me tivesse deixado contar-lhe! 
Quando as suas últimas memórias giravam pela capela dos Anjos, perguntou-me, um dia, inquieta: «Ó filho, sempre teria sido verdade que a senhora D. Maria Romana deu o Badalisco ao lingrinhas do….?» Com a pergunta veio logo a resposta e pôs-se uma pedra sobre: «Olha qu’essa! E depois como é que aquele fanico de gente o levava para casa!» 
D. Maria Romana era a respeitabilíssima proprietária da Quinta dos Anjos.
Temia pela segurança da estátua, a minha mãe. Grande erro teria sido se tivessem arrancado o monstro ao território onde as forças celestes o haviam consignado. 
A matéria estava fora das minhas competências! Só me faltava, agora, tropeçar nessa criatura.

* Nota: este texto foi redigido em 2010.

(Continua)

sexta-feira, 25 de março de 2022

CONTAS DO RECADO : Estórias e tisanas

                                         Estórias  e tisanas

Agora este. Produz literatura  por encomenda, para quem passe pelas ruas do Funchal. Ao que me contaram, entenda-se.

Aguarda clientes, ao lado do seu carrinho de compras . Fuma em silêncio.

Aos pés, duas latas. Uma cheia, a das beatas; outra sem cheta. Quantas moedas ali caem, até ao fim da espera? 

Alinhado com vendedoras de flores. Espera, quase estátua.

Logo a seguir à velhota que oferece tisanas  de boa saúde em  raminhos de macela. 

Desce esta do Monte,  no primeiro autocarro. Tira a mercadoria da cesta-galinheira e....

Pobre será a freguesia. Mas  isso não lhe empece os sorrisos nem os elogios aos simples da cesta. Mais do que todos, à macela! Tisanas para muitas maleitas. Com a graça de Deus!, acrescenta.

E o seu vizinho vai aparecer? Qual será a vida daquele rapaz?

Há de chegar de mansinho:

Hi!

- Ai?!..... Bom dia! Alegre-se! Hoje é que vai ser!....

Pudesse ela espevitar aquele pobre  diabo! Que mau passadio terá tido , antes de aparecer ali?

Por vezes atira-lhe: 

- Somos almas livres, homem! Ponha  cara mais alegre!

Como resposta, ele ergue o  polegar:

 Fixe! Tudo bem! Like! 


***

No fim da manhã, talvez a ervanária já  tenha   para ir comprar uns restos, nas bancas dos Lavradores

Sim ou não, há que regressar. O autocarro, esse, não espera.

Parte, com a sua esgarçada cesta  de verga,  à cabeça.

-Passe bem, vizinho!

E ele reergue o polegar. Sem abrir bico nem aquecer o olhar.

Queimará mais uns charros e umas horas até descolar. Puxando pelo... trolley. 

Sem lhe tirar o pouco convincente dístico publicitário:  

POET FOR HIRE.  Pay with what you like.... Especialista em   poemas, estórias, estórias de... suicídios!

À vontade do passante! Que também pode ajudar a lata, se não estiver para adquirir os serviços do artista.

Quantas suicídios carregará  aquele carrinho?

Mas os carros de compras não contam estórias...




terça-feira, 22 de março de 2022

ESCREVIVENCIAS.2. 8 Quinta dos Anjos

 

Quinta dos Anjos 

A minha mãe, inquieta, no inverno: «Já o sol se pôs, atrás da Quinta dos Anjos…».

«Com um fósforo,  apago-a! », raivava o Raul da Romeira.

O Rebelana: «Vou-t’a contar…» E discorria sobre a fuga do texugo.

Lá iremos....


A Quinta dos Anjos resiste! Até quando?....

 Meu ameaçado urso solitário, para onde caminhas?

Até quando, engenheiro Fernando Caldas? 

Por favor, em nome da memória dos seus, dos vizinhos e descendentes de antigos trabalhadores, não permita que a Quinta seja sacrificada às leis do mercado.

 Do ponto de vista cultural, a Quinta é de todos nós. Dos filhos e netos de quem aí trabalhou, de quem aí se divertiu e rezou nas romarias. De quem ali foi levado ao batismo, à comunhão, casou ou assistiu a ofícios fúnebres. Os agnósticos também têm memória religiosa! 

De quem se orgulhou da perfeição do trabalho prestado e da grandeza dos empregadores. – 

Quantas pessoas ainda vivas, sem qualquer laço de parentesco com àquela família não sofreram também com os seus desgostos? 

– De quem ali foi roubar lenha, fruta ou caça… De quem ali estaria disposto a regressar para reencenar  a tragicomédia... .

Sei que tudo isto  deu muita volta! Mudam-se os tempos!

 Eu? Não passo de um absentista, com duvidoso voto em matéria ambiental, dir-me-ão. Se os proprietários de pequenas frações, na vizinhança, se submeteram, para sobreviver, à lógica da oferta e da procura…

Porém, há património invendível! O das memórias, por exemplo. Mude a Quinta de dono, de funções ou de feições… Fique o sítio irreconhecível.,,

Avancemos.

Tenho quatro ou cinco anos e assisto ao casamento da Ilda Direitinho com o Joaquim Caetano, tratoristas da Quinta. 

Permanece a capela branca no meu olhar. A imagem da Senhora brincando com o pezito do bebé. Nisso vejo eu divindade, não nas coroas carnavalescas com que embarretaram as figuras do altar. A alvura das casas da quinta velha. Ao lado da capela, a horta, as abelhas do ti’ Caréu, parente do meu avô António...

 «O ti’ Caréu, fazia outro tanto, Thomas», tornava eu ao meu amigo borgonhês, apicultor que, sem máscara nem luvas, recolhia as suas abelhas na colmeia. Só com um assobio. Allez!

Havia também por ali, perto da capela, um moinho, onde meu pai mandava farinar as rações do gado. Um picadeiro?… Já não atino.

 Na leitaria, impecavelmente limpa, a tia Luísa Caréu, atende a freguesia, avisa: «Amanhã há manteiga. Hoje não se despacha o leite todo…» Do lado de fora do balcão, o moço da vacaria, Manel da Vaca – alcunha do Manuel Custódio, filho do Júlio Bimbo, apimenta a conversa:

 «Ó ti´ Luísa, se as vacas cada vez têm as mamas maiores…» Daí, vai-se descambar em mamas que já não são de vaca.

 Júlio Bimbo viera dos lados de Viseu, para trabalho sazonal na Quinta. Ficou. Mais um, para engrossar a população da Portela, com filharada incontável. A minha homenagem à ti’ Maria da Luz. As todas as criadeiras de famílias pobres e numerosas daqueles tempos. Mães-coragem!

Os pavões.

 Quantas vezes já falei ou fiz falar dos pavões da Quinta dos Anjos. Que querem? Se continuo a ouvi-los, aos pavões e à explicação do Coquelim sobre os intentos daquele apelo cortante: cobrir as fêmeas, desfazer-lhes os ninhos, dar cabo das crias implumes… Poderia haver tanta maldade na natureza paterna? Inquietava-me. 

Deixa-os estar, por hoje. Aos pavões que já lá não vivem, conforme os reparos da Maria Alzira.

 Ouçamos antes estas rolas, estas urbanas e emigradas da Turquia, primas colombinas das outras que vinham ao concerto  das pinhas ressequindo-se, de Maio a Setembro, na coutada dos Anjos. Também a memória precisa de transmigrar, para alívio dos loucos.

Deixa lá estar aquelas penas verde-azul-e-ouro que o Joaquim Caetano trazia para a Ilda, minha vizinha, quando a vinha namorar? Ali, espetadas na areia de uma jarra em cima da cómoda da casa-de-fora do Manuel Direitinho. 

Tudo à volta ruiu, só te ficaram as penas de pavão. Quais penas, mentiroso? Acorda!

Tem a capela dos Anjos o portal, com galilé de oito colunas lisas, virado para poente. Não me esqueci deste número, ou estou enganado? No átrio, junto ao cruzeiro, vejo a minha tia Piedade, a senhora que me enrolou nesta história. «Conta, Quim, ajuda-me a contar.» Outra vez ela, no último adeus. Ela e a Bia com um sufoco: «Acabou-se tudo! Os próximos…» 

Os próximos somos nós. Por isso, contemos.

Piedade. Jovem, sorridente, transportando uma fogaça, na festa dos Anjos, de 1949 ou 50. Chegara o cortejo das fogaceiras, depois de subir da Portela, desde a porta do Cruz de Cristo – a sociedade recreativa de que meu pai e meu tio Adelino Carolo foram cofundadores. Começou a missa.

            Há sermão na capela apinhada. Solto-me da mão de minha mãe e furo pela multidão à procura da claridade. Da rua. Levaram-me à capela a pretexto de ir apreciar as searinhas do altar. Não vi lá searas nenhumas! Searas eram os meus olhos castanhos nos alqueives, os meus olhos verdes nas encostas e cabeços, os meus olhos de ouro na ceifa e debulha.

 Hei de passar décadas a pedir explicações à minha mãe sobre o uso das sementes germinadas na decoração do altar pela festa dos Anjos. Uma vez, acrescentou um pormenor chave: «Era uma festa do Espírito Santo. Com os alguidares de searinhas pedia-se melhor sorte na lavoira!»

 Cinquenta anos depois, encontro um açoriano numa casa de sementes, em Lisboa. Compra ervilhas, para fazer searinhas, num recanto do seu andar da Morais Soares. «É preciso que as folhas fiquem brancas, como as asas dos anjinhos. Era assim, lá na ilha!» Os tabuleiros de germinação não podiam receber qualquer luz, enquanto as plantas se esforçavam por crescer.

Estas searas-miniatura eram ainda utilizadas como decoração de montras, durante as primeiras Feiras do Ribatejo. Touros, campinos, cavalos e carneiros, em barro, davam por uns dias cor a espaços onde, antes, estavam expostos queijos, presuntos, peças de roupa ou relógios… Os meus olhos de rapazinho de dez anos embeveciam-se com toda aquela metáfora agrícola da nossa terra.

Na galilé da capela, encontro o Manuel Direitinho, desbarretado, por respeito ao lugar e resmungão, por inércia. Queixando-se do «gajo das saias» que nunca mais…Acabava a pregação. O velho já andara seguramente pelo arraial ou estivera a beber na taberna do Pedro Carolo.

A Quinta dos Anjos defendia-se dos intrusos mediante uma cercadura de valados: espaldas de terra batida, encabeçadas por balças e arame farpado. A alvenaria ficara-se só pelo portão sólido, grandioso. Dois pescoços-de.cavalo, garimpa alta, suportavam os gonzos do portão de ferro. Segurança e privacidade. Só que frente da taberna do Pedro Carolo, mantinha-se uma incolmatável brecha no valado. Não era um porto escancarado, a convidar à devassa, antes discreto postigo de vaivém para o vinho, a aguardente e o tabaco. Como se a taberna fosse cantina da Quinta.

Manuel Direitinho não gostava de padres. Quanto mais não fosse por usarem aquele disfarce das saias, como as mulheres. Na sua mocidade, um padre revelara-lhe o jogo – contar-me-á uma dúzia de anos depois, revelho, retorcido, arrastando sempre os erres – : «Comem carrne na Qu’rrresma, e as mulherres dos outrros todo ano». 

Bons estômagos, que lhes faça bom proveito.

 Conclusão tirada pelas confidências de um pregador, aboletado na casa dos Direitinhos, durante uma festividade dos Anjos, ainda nos tempos de El-rei D. Carlos.

            Ouvem-se foguetes, outra vez. Antes, já me tinham despertado pela alvorada.

O milho de sequeiro, cuja bandeira não ouvisse os foguetes da festa dos Anjos, não se contasse com ele. Ditos da Clemência, bisavó do meu colega Daniel, pela voz da filha Lúcia.

 Andavam  os festeiros, pelas casas da Besteira, na recolha de donativos  para a quermesse. À porta da cozinha da minha casa, o Brás Pedreiro, opa vermelha, na companhia de músicos e do fogueteiro, dava o Menino Jesus a beijar. 

Guarda o donativo da nossa casa e ordena que se estoire um foguete. Caio num berreiro. Por causa do meu horror aos estampidos, o meu pai pede que se evite o fogo. Como alternativa, o Brás acha-se na obrigação de entregar o foguete por deflagrar, e meu pai vai guardá-lo nas ripas do telhado da casa do carro. Onde ficará meses a tentar-me…” Se lhe chegasse um tição?”

(Continua)