6 As leituras da avó Otília
Livros da Portela antiga. De um
sítio onde, além dos poucos manuais escolares… só haveria mais o “livro da mercearia”,
escriturado a rogo das mulheres. «Se fizer favor, escreva lá esta quartinha de
açúcar…». Mais o “da taberna”, onde os
homens mandavam. «Assente, que depois se paga!» Quando?
Acabámos aqui? Deixem-me indagar.
Os meus avôs António Beja e Joaquim Marona tinham uma literacia muito parcial: o primeiro, entendia-se com as gordas d’O Século; já o segundo só conseguia fazer anotações mais ou menos alfanuméricas, suficientes para assegurar a contabilidade agrícola. Testemunho da minha mãe que dele aprendeu a fazer as folhas semanais de ponto do pessoal trabalhador. Pelo menos, recolheu esta vantagem pela breve escolarização que permitiu à filha… Porém, que mais se podia pedir a um homem educado apenas pela labuta da Quinta da Mafarra, continuada na vizinha Quinta dos Anjos?
Sobre quantos antepassados
analfabetos assenta este nosso privilégio? Perguntava por aí o nosso quase
vizinho poeta Ruy Belo.
E Otília, a avó paterna. “Mulher-e-homem da
casa”, como a definirá a filha Piedade. Azougada. Sempre a esbracejar contra a
adversidade. Criou quatro filhos, costurou, cultivou a horta, colheu e vendeu
os seus primores. […] Setentona, quando merecia o descanso, as coisas pioraram.
O meu avô ficou imobilizado por uma congestão cerebral e ela teve de
reencontrar escondidas energias.
Julgava-a tão incapaz de ler como
a avó Gertrudes. Mesmo assim, trouxe-lhe livros, que apreciou por falarem do
nosso mundo rural. Redol. Pedia mais.
Só agora sei que a nossa Maria
Alzira era outra fornecedora.
O outro, um romance de cavalaria.
Com personagens e enredos que ainda hoje alimentam o teatro popular
transmontano e santomense.
Passados mais trinta anos,
perguntei à minha tia Piedade pelo paradeiro dessa livralhada. Estou neste momento
a ouvir-lhe a voz musical, tranquila. «Ò Quim, onde pára tal coisa?...» Que,
sem dúvida, se lembrava…capa de pele, avô Hipólito, arrumados entre peças de
louça de Sacavém.
Mais do que a matéria carolíngia,
fascinou-me naquela peça bibliográfica a nota lançada a tinta pelo meu bisavô: “Meu
filho José Hypolito / Nasceu a 20 de Dezembro de 1887. Francisco Hypólito da Sª”. Seu único varão.
Anos mais tarde, quantos? Uma
rapariga inscreveu na mesma página: “Maria José/ filha do Sr. J.H”. Filha de
meu tio-avô José Hipólito que, em 1925, foi o encarregado da obra de restauro
da nossa Escola.
Houve ainda quem lavrasse, a
lápis, nessa página e na seguinte, operações de aritmética. Cálculo de custos?
À falta de papel, fazia-se uma conta numa parede, na poeira do caminho, quanto
mais nas páginas de um romance de cavalaria!
Devolvi o livro à tia Piedade.
Contudo, deste fundo do letrado bisavô Francisco Hipólito da Silva, chegou ainda
à minha posse um outro exemplar. Oferecido em 1961 pelo seu neto, Júlio, o então
único sobrevivo dos filhos de José Hipólito e de Maria José da Quintinha.
Tratava-se de um pitoresco “dicionário de sinónimos e poético”, da primeira
metade do século XIX, alavanca facilitadora de rimas a poetastros encalhados.
Trazia entre duas páginas uma argolinha de flor de glicínia. Deixada quando a
nau desencalhou?
Como o palavrório já vai longo,
por aqui me fico. A Florinda entrará apenas quando esta poeira assentar.